Como a turbulência diplomática entre Brasil e EUA pode atingir o setor aéreo?


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Nos últimos meses, a relação entre Brasil e Estados Unidos entrou em forte turbulência, e quem sente os abalos é o setor aéreo brasileiro. Declarações e posicionamentos do governo Lula – como o alinhamento político com a Rússia em plena guerra na Ucrânia e um discurso crítico à hegemonia americana nos fóruns internacionais – azedaram o clima diplomático. Em resposta, Washington adotou uma postura dura: o presidente Donald Trump acusou o Brasil e seus parceiros do BRICS de políticas “antiamericanas” e chegou a ameaçar tarifas extras contra essas nações. O resultado desse choque geopolítico é uma crise diplomática e tarifária que já cobra um preço alto das empresas aéreas, fabricantes de aviões e viajantes no Brasil.

Neste artigo, você entenderá em profundidade os impactos dessa crise para o setor aéreo brasileiro, os riscos envolvidos e o que pode ser feito para mitigar as consequências negativas dessa tensão política. Continue lendo e descubra como essa turbulência pode afetar diretamente o futuro das suas viagens e da indústria aeronáutica nacional.

Como foi que chegamos a este ponto?

Desde o início de seu mandato, o governo Lula deixou claro que pretendia rever a política externa anterior, marcada pela aproximação com os EUA durante o governo Bolsonaro, substituindo-a por um alinhamento cada vez mais estreito com a China. Essa mudança não é sinônimo de maior autonomia, mas sim de uma adesão crescente aos interesses chineses, transformando o Brasil, em muitas ocasiões, em um porta-voz informal das pautas de Pequim na América Latina. Tal postura gerou reações negativas imediatas entre as potências ocidentais, especialmente quando o Brasil decidiu não aderir às sanções contra a Rússia após sua invasão à Ucrânia.

Como consequência prática dessa aproximação sino-russa, o Brasil aumentou substancialmente as importações de diesel russo – somente em 2024, o país importou US$ 5,4 bilhões em diesel russo, tornando-se um dos maiores compradores globais desse produto. A curto prazo, essa estratégia alivia custos internos de combustível, mas também gera tensões significativas com os aliados ocidentais tradicionais. Não por acaso, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) alertou que Brasil, China e Índia poderiam sofrer sanções econômicas severas caso continuassem com esse tipo de comércio. O próprio secretário-geral da Otan, Mark Rutte, explicitou uma ameaça concreta: países que persistirem em comprar petróleo e gás russos poderiam enfrentar tarifas proibitivas de até 100%, se Moscou não avançar em direção à paz dentro de 50 dias. Ao optar por manter relações comerciais e políticas estreitas com Moscou – alinhadas diretamente aos interesses estratégicos da China –, o Brasil colocou-se na linha de tiro dessas potenciais retaliações.

A resposta de Washington não tardou a chegar, deixando clara sua insatisfação com a estratégia diplomática brasileira. Trump anunciou a imposição de tarifas de 50% sobre produtos brasileiros, com início previsto para agosto de 2025. Além disso, deixou no ar uma ameaça ainda mais severa: tarifas adicionais de até 100% poderiam ser impostas caso o Brasil continuasse comprometendo interesses estratégicos americanos, como desafiar abertamente o papel do dólar no comércio internacional. Essa preocupação não é à toa: durante a cúpula do BRICS no Rio, Lula alinhou-se claramente com o discurso de Pequim, defendendo alternativas ao dólar – postura vista por Washington como uma provocação direta. A reação imediata do governo brasileiro foi desafiadora em termos retóricos, mas internamente o país percebe o peso real dessas medidas, posicionando-se agora em uma situação cada vez mais desconfortável, isolado do Ocidente e dependente da China em meio a uma crise econômica e diplomática crescente.

O peso das escolhas diplomáticas no setor aéreo brasileiro

Diante da iminência dessas tarifas, o cenário comercial entre Brasil e Estados Unidos tornou-se especialmente sensível. O impacto dessas sobretaxas ameaça inviabilizar uma parcela significativa das exportações brasileiras para o mercado americano, gerando prejuízos difíceis de serem compensados no curto prazo. Não é por acaso que o governo Lula adotou uma postura cautelosa internamente, apesar da retórica pública mais agressiva. Ministros e líderes empresariais buscam meios de minimizar os danos, evitando retaliações que poderiam escalar ainda mais o conflito comercial. Afinal, o risco de um rompimento total das relações comerciais não é algo distante da realidade, e tal cenário traria consequências devastadoras para diversos setores econômicos, especialmente para o setor aeronáutico brasileiro, já extremamente vulnerável.

Nesse contexto, a Embraer desponta como um exemplo emblemático dos prejuízos práticos dessa turbulência política. Recentemente, a fabricante brasileira sofreu um revés significativo ao perder um contrato avaliado em aproximadamente US$ 2,7 bilhões com a companhia aérea polonesa LOT, que optou pelos jatos Airbus A220. A decisão polonesa, anunciada durante o Paris Air Show em junho, não se baseou somente em critérios técnicos ou comerciais, mas claramente foi influenciada pelo ambiente geopolítico adverso criado pela aproximação brasileira com a Rússia. A visita recente de Lula a Moscou, onde apareceu ao lado de Vladimir Putin, repercutiu muito mal junto às autoridades polonesas, que têm assumido uma posição firme contra a invasão russa à Ucrânia. Essa derrota comercial da Embraer revela com clareza o peso das escolhas diplomáticas do governo brasileiro sobre o sucesso ou fracasso dos negócios nacionais no exterior.

A situação pode piorar ainda mais para a Embraer se as tarifas prometidas pelos EUA entrarem em vigor. O mercado americano é estratégico para a fabricante brasileira, especialmente no segmento de aviação executiva, onde cerca de 70% das entregas têm destino aos clientes norte-americanos. No caso dos aviões comerciais regionais, esse percentual também é expressivo, chegando a quase metade das vendas. Uma tarifa de 50% sobre essas aeronaves seria praticamente um embargo disfarçado, elevando o preço final das aeronaves brasileiras a níveis proibitivos para clientes americanos. Especialistas da empresa estimam perdas na casa dos R$ 20 bilhões até 2030, cenário que poderia levar a Embraer a reduzir drasticamente sua produção, gerar demissões e comprometer seriamente sua capacidade competitiva global. Para uma empresa que ainda se recupera lentamente das sequelas da pandemia, tais prejuízos seriam devastadores, marcando um retrocesso dramático para uma das maiores indústrias de alta tecnologia do país.

Mas a crise diplomática não afeta apenas a indústria aeronáutica. Outro setor diretamente atingido é o turismo internacional, e por consequência, as companhias aéreas brasileiras que operam rotas entre Brasil e Estados Unidos. A decisão recente do governo Lula de reintroduzir a exigência de vistos para turistas americanos, canadenses e australianos gerou consequências imediatas e negativas. Somente na primeira semana após a vigência da nova regra, dezenas de turistas americanos foram barrados em aeroportos brasileiros por não possuírem o documento adequado. Tal situação gera não apenas desconforto para os visitantes, mas também afasta potenciais turistas que optam por destinos mais acessíveis. Considerando que o mercado americano representa centenas de milhares de visitantes anuais, essa queda na demanda é preocupante. Para um setor ainda fragilizado pela pandemia e em busca de recuperação econômica, qualquer retração no turismo internacional pode significar um golpe duríssimo, reduzindo voos, empregos e investimentos no país.

Restrição ao GPS e limitação dos voos de companhias aéreas brasileiras

Recentemente, alguns rumores extremos surgiram na imprensa como possíveis medidas retaliatórias dos Estados Unidos contra o Brasil. Dentre as especulações mais alarmantes ventiladas estavam uma eventual restrição ao acesso brasileiro ao sistema GPS norte-americano e até mesmo uma possível limitação ou suspensão dos voos das companhias aéreas brasileiras para os EUA.

Esses cenários, embora preocupantes à primeira vista, são amplamente considerados improváveis por especialistas do setor. No caso do GPS, restringir o sinal exclusivamente ao território brasileiro seria tecnicamente desafiador e implicaria consequências significativas também para países vizinhos e para os próprios Estados Unidos. Uma medida dessa natureza, se implementada, não afetaria apenas a aviação civil, mas causaria perturbações severas em telecomunicações, navegação marítima, operações militares e serviços essenciais, algo que os americanos certamente desejariam evitar.

A hipótese de limitação dos voos brasileiros para o espaço aéreo americano segue o mesmo padrão de baixa probabilidade. Apesar de ter sido comparada às sanções impostas contra a Rússia em função da invasão à Ucrânia, o cenário atual brasileiro não justifica uma ação tão extrema, e o impacto econômico e político desse tipo de decisão tornaria seu custo extremamente alto para os próprios Estados Unidos. Afinal, barrar companhias brasileiras significaria, na prática, interromper não apenas fluxos turísticos e comerciais, mas também prejudicar milhões de cidadãos, empresas e relações bilaterais já consolidadas.

No entanto, embora sejam improváveis, o simples fato desses rumores circularem já é um sintoma preocupante, revelando o grau de deterioração nas relações diplomáticas e a necessidade urgente de ajustes estratégicos na política externa brasileira. Para o setor aéreo, ainda que não sejam efetivadas, essas especulações aumentam a percepção de risco e incerteza, prejudicando o ambiente de negócios, afastando investimentos e dificultando a recuperação econômica das companhias aéreas brasileiras no pós-pandemia.

Combustível e manutenção das aeronaves em risco

Ainda que rumores como bloqueio de GPS ou fechamento do espaço aéreo sejam relativamente improváveis, existem vulnerabilidades concretas e mais imediatas que exigem atenção redobrada. Uma delas é o fornecimento de combustíveis para aviação, especialmente o querosene de aviação (QAV). Atualmente, boa parte desse combustível consumido pelas empresas brasileiras é refinado no exterior, com significativa participação dos Estados Unidos. Um aumento nas tarifas americanas ou eventual barreira tarifária no comércio de derivados de petróleo teria um impacto direto e pesado sobre os custos operacionais das companhias aéreas brasileiras, elevando os preços das passagens e reduzindo ainda mais a competitividade do setor no cenário internacional.

Além da questão do combustível, outra fragilidade crítica é a manutenção das aeronaves, especialmente aquelas fabricadas fora do país. Grande parte das peças, componentes e serviços técnicos utilizados pelas companhias aéreas brasileiras têm origem norte-americana ou dependem de fornecedores ligados diretamente aos EUA. Uma escalada das tensões diplomáticas poderia, na pior das hipóteses, levar à interrupção no fornecimento dessas peças e serviços ou impor tarifas adicionais, elevando custos operacionais e reduzindo margens já bastante apertadas. Esse cenário representaria não apenas uma elevação dos gastos, mas também riscos potenciais à segurança das operações aéreas se as companhias brasileiras enfrentassem dificuldades adicionais para garantir manutenção adequada e regularidade nas operações das aeronaves.

Essa dupla vulnerabilidade - combustível e manutenção - expõe de maneira contundente o perigo real do atual curso diplomático adotado pelo governo brasileiro. Diferentemente das ameaças remotas especuladas pela mídia, esses riscos já são perceptíveis no planejamento estratégico das companhias aéreas e podem rapidamente se tornar realidade caso não haja uma rápida e pragmática recomposição das relações diplomáticas e comerciais com os Estados Unidos e outras potências ocidentais. Ignorar essas vulnerabilidades, portanto, é arriscar que turbulências políticas se traduzam em prejuízos econômicos concretos e duradouros para um setor essencial ao desenvolvimento nacional.

Considerações

Diante desse cenário desafiador, o Brasil precisa refletir urgentemente sobre as consequências práticas da sua política externa atual. A escolha por alinhar-se estreitamente com a China e manter uma postura ambígua e tolerante com a Rússia – país que atualmente invade um território soberano – trouxe efeitos colaterais que ultrapassam a esfera diplomática. Esses efeitos atingem diretamente o setor aéreo, um dos mais estratégicos e sensíveis para a economia brasileira.

A retórica de confronto com os Estados Unidos, ainda que apresentada sob a bandeira da soberania nacional, ameaça enfraquecer indústrias-chave, como a Embraer, reduzir o turismo internacional e aumentar custos operacionais críticos das companhias aéreas. Ao insistir em uma diplomacia baseada na ideologia em detrimento do pragmatismo e da histórica característica neutra do Brasil, o governo brasileiro não apenas expõe o país a retaliações comerciais imediatas, mas compromete o crescimento e o futuro econômico de toda a nação.

Neste momento crítico, é essencial que autoridades governamentais, líderes empresariais e o setor aéreo trabalhem juntos para buscar soluções práticas e imediatas, reduzindo os danos já causados e evitando novos prejuízos. A retomada de um diálogo equilibrado e menos ideológico com as potências ocidentais e os (B)RICS, pode ser o primeiro passo em direção a uma política externa mais responsável e alinhada aos reais interesses econômicos e sociais do país.

O momento é de realismo, pragmatismo e ação. Se o Brasil quer continuar competitivo no cenário global, principalmente em um setor sensível e de alta tecnologia, como a aviação, será preciso recalibrar a rota diplomática rapidamente. Caso contrário, o risco é permanecer em uma turbulência permanente, pagando um preço muito alto por escolhas políticas distantes dos interesses concretos dos brasileiros.


*Nota sobre o contexto político

É impossível analisar a atual crise diplomática entre Brasil e Estados Unidos sem reconhecer o pano de fundo político que alimenta parte dessas tensões. As medidas anunciadas pelo governo norte-americano - especialmente as tarifas comerciais e a revogação de vistos de autoridades brasileiras - não têm motivação exclusivamente econômica e geopolítica. Elas se inserem em uma disputa mais ampla, marcada pelo apoio direto de Donald Trump a Jair Bolsonaro e pela reação à atuação do Judiciário brasileiro, particularmente do STF. A resposta de Trump, ao qualificar os processos contra o ex-presidente como perseguição política, e as ações diplomáticas adotadas como retaliação, mostram que parte dessa crise tem caráter ideológico e eleitoral. Ainda assim, os impactos concretos no setor aéreo brasileiro são reais — e independem da preferência política de quem observa os acontecimentos. Este artigo se concentra justamente nesses efeitos práticos, que precisam ser enfrentados com seriedade, independentemente de quem esteja no poder ou de qual lado se esteja na disputa política.


Referências Bibliográficas
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Sobre o autor: 
Antônio Lourenço Guimarães de Jesus Paiva 
Pai da Helena
Diretor da Flylines 
Graduado em Aviação Civil pela Universidade Anhembi Morumbi
Especialista em Planejamento e Gestão Aeroportuária pela Universidade Anhembi Morumbi
Especialista em Gestão de Marketing pela Universidade de São Paulo
Especialista em Data Science e Analytics pela Universidade de São Paulo
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