Guerra Tarifária China–EUA: impactos na aviação global


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A aviação mundial enfrenta hoje uma turbulência que não vem das nuvens, mas das disputas comerciais entre as duas maiores potências econômicas do planeta. A chamada guerra tarifária entre Estados Unidos e China, desencadeada há alguns anos, atingiu níveis sem precedentes em 2025, com tarifas punitivas acumuladas em até 145% sobre a maioria dos produtos chineses importados pelos EUA. Em resposta, Pequim elevou suas próprias tarifas de retaliação para 125% sobre todos os produtos americanos. Estas medidas extremas, além de afetarem diretamente o comércio bilateral, estão repercutindo no setor aéreo global – dos acordos de voos internacionais à fabricação de aeronaves e custos operacionais. Para entender melhor sobre essas consequências, é preciso primeiro recordar como essa guerra comercial começou e como ela escalou até o ponto atual. Por isso, fique conosco até o final deste artigo.

Raízes da Guerra Tarifária

As tensões comerciais entre EUA e China vinham se formando há décadas, mas ganharam contornos de guerra econômica aberta a partir de 2018. Naquele ano, o então presidente Donald Trump iniciou uma série de tarifas sobre produtos chineses, argumentando que a China mantinha práticas desleais de comércio, como roubo de propriedade intelectual e exigência de transferência forçada de tecnologia de empresas americanas. Washington também apontava o enorme déficit comercial com Pequim como evidência de um relacionamento desequilibrado.

Em contrapartida, Pequim acusou os EUA de protecionismo nacionalista e logo retaliou com tarifas sobre produtos americanos. Esse vai-e-vem marcou o início oficial da guerra tarifária sino-americana, que se estenderia pelos anos seguintes. A primeira fase da guerra comercial viu tarifas americanas incidindo sobre centenas de bilhões de dólares em importações chinesas – de aço e alumínio a eletrônicos e bens de consumo – enquanto a China respondia na mesma moeda, mirando produtos agrícolas dos EUA (soja, carne suína) e até aeronaves.

Já em 2018, Pequim chegou a ameaçar uma tarifa de 25% sobre aviões americanos (de 15 a 45 toneladas), justamente para atingir os jatos da Boeing. Essa tarifa mirava especialmente os Boeing 737 (incluindo modelos 737 MAX), principais produtos de exportação aeroespacial dos EUA, embora poupasse aviões maiores da Boeing e todos os da Airbus – uma estratégia calculada para pressionar Washington sem prejudicar as próprias companhias aéreas chinesas.

Ao mesmo tempo, disputas tecnológicas paralelas agravavam o clima: os EUA restringiram negócios da gigante chinesa Huawei e impuseram controles à exportação de semicondutores avançados, enquanto a China investiu pesado para reduzir dependência de tecnologia estrangeira. Essa mistura de conflitos comerciais e tecnológicos elevou o nacionalismo econômico em ambos os países e deteriorou as relações bilaterais. Em 2019, a guerra tarifária atingiu um novo patamar, com múltiplas rodadas de elevação de tarifas de lado a lado. Ainda assim, as negociações continuaram e resultaram em um acordo preliminar em janeiro de 2020 (a chamada Fase Um), no qual a China se comprometeu a aumentar compras de produtos dos EUA, e os EUA aliviaram alguns planos de tarifa.

Porém, esse acordo apenas estancou temporariamente a escalada, sem resolver os problemas de fundo. O choque da pandemia de COVID-19 logo em seguida ofuscou a disputa comercial, mas não levou ao cancelamento das tarifas existentes – que permaneceram em vigor. De fato, a administração de Joe Biden, iniciada em 2021, manteve as taxas herdadas sobre produtos chineses e até ampliou barreiras em setores como painéis solares e componentes de veículos elétricos. Ou seja, a trégua foi limitada. Na China, por sua vez, crescia a convicção de que os EUA buscavam conter seu desenvolvimento tecnológico, e o governo chinês dobrou a aposta em políticas industriais para alcançar autossuficiência em áreas estratégicas.

Nova escalada e tarifas recordes em 2025

A relativa calmaria desses anos deu lugar a uma nova escalada abrupta quando Donald Trump retornou à presidência dos EUA, em 2025. Logo no início do mandato, Washington sinalizou endurecimento: em fevereiro e março de 2025 foram aplicados aumentos adicionais de 10% + 10% nas tarifas contra a China. Mas a medida mais drástica veio em abril: um tarifaço de 125% sobre praticamente todos os produtos chineses, anunciado pela Casa Branca. Somando-se essa nova taxa aos ~20% que já estavam em vigor sobre boa parte das importações chinesas, os EUA passaram a impor um incrível total de 145% em tarifas – em outras palavras, mais que dobrando o custo dos bens chineses para o consumidor americano médio​. Foi um salto sem precedentes, que pegou muitos de surpresa pela magnitude.

O próprio Trump justificou a decisão alegando "falta de respeito" da China às regras do mercado mundial e prometendo que Pequim em breve entenderia que “os dias de roubar os Estados Unidos acabaram”​. Pequim respondeu de forma proporcional (pelo menos em espírito). No dia seguinte ao anúncio americano, o governo chinês declarou que elevaria as tarifas sobre todos os produtos dos EUA para 125%, um aumento em relação aos 84% médios que já cobrava​.

Na prática, essa medida, torna quase proibitivo importar certos itens americanos na China, fechando ainda mais o enorme mercado chinês para empresas dos EUA. Trata-se de um confronto tarifário total, com ambos os lados cobrando taxas superiores a 100% sobre o comércio bilateral – algo praticamente inédito entre economias dessa magnitude. Em um movimento diplomático, a China procurou estreitar laços com outros parceiros para compensar as perdas: líderes chineses trocaram mensagens positivas com a União Europeia, sinalizando disposição de cooperação comercial e industrial com os europeus em meio ao embate com Washington​.

Enquanto isso, autoridades americanas buscaram justificar internamente as tarifas elevadas como necessárias para proteger empregos domésticos e forçar mudanças no comportamento chinês. O resultado imediato desse agravamento foi um esfriamento ainda maior das relações sino-americanas. Negociações bilaterais praticamente estagnaram – Pequim se recusa a negociar “com uma arma apontada para a cabeça”, ao passo que Trump aposta que a pressão extrema obrigará a China a ceder. Observadores alertam que essa guerra comercial renovada corre o risco de se prolongar, dado que nenhum dos lados quer parecer fraco.

Com os fluxos de comércio direto EUA–China severamente taxados, cadeias globais de suprimentos passaram a se reorganizar, e setores industriais estratégicos entraram no centro das atenções. Nesse contexto, poucos setores sentem tantos efeitos cruzados quanto o setor aeronáutico e de aviação – que envolve comércio de aviões, peças, serviços de manutenção e movimenta empresas e passageiros ao redor do mundo. A seguir, examinamos como essa guerra tarifária impacta a aviação global, tanto do ponto de vista comercial (companhias aéreas e rotas) quanto industrial (fabricantes de aeronaves e fornecedores).

Impactos no setor aéreo global

Com tarifas punitivas encarecendo produtos e tensionando relações internacionais, as consequências para a aviação se manifestam de formas diretas e indiretas. De um lado, as companhias aéreas e acordos de serviços de voo entre os países são afetados pelo clima adverso; de outro, a indústria aeronáutica – incluindo fabricantes de aviões, empresas de manutenção e cadeias de suprimentos – enfrenta novos desafios relacionados a custos e estratégia. Vamos a eles:

Nas companhias aéreas e acordos de voos internacionais

As ligações aéreas entre EUA e China, que já eram limitadas, tornaram-se um símbolo das dificuldades impostas pela rivalidade crescente. Até hoje, não existe um acordo de “céus abertos” entre os dois países – aquele tipo de tratado que liberaliza totalmente os voos entre as nações. Pelo contrário, os voos estão sujeitos a acordos bilaterais restritivos e a quantidade de frequências permanece controlada. Com menos voos diretos do que a demanda potencial suportaria, as tarifas aéreas tendem a ser altas nas rotas transpacíficas entre China e EUA​. Autoridades aeronáuticas chinesas hesitam em abrir completamente o mercado, temendo que suas companhias não consigam competir de igual para igual com as gigantes americanas​.

Assim, as negociações para ampliar voos – inclusive aquelas previstas desde 2010 para avançar rumo a um acordo de céus abertos – foram repetidamente adiadas ou emperraram, especialmente conforme a disputa comercial se acirrou. Esse cenário prejudica tanto passageiros (com menos opções de voos e preços mais caros) quanto as próprias empresas aéreas, que deixam de aproveitar plenamente a crescente demanda por viagens entre as duas maiores economias do mundo. A guerra tarifária, por si só, não impõe restrições diretas a voos de passageiros ou cargas, mas o ambiente político criado por ela dificulta a cooperação no setor de aviação.

Companhias aéreas americanas e chinesas não conseguem firmar joint-ventures amplas com compartilhamento de receitas (como as alianças que existem, por exemplo, entre empresas dos EUA e da Europa), pois isso exigiria um nível de abertura de mercado que hoje é inviável. Sem essas parcerias, as rotas sino-americanas dependem apenas de acordos limitados de codeshare e iniciativas isoladas.

Nos últimos anos, vimos inclusive uma redução do intercâmbio aéreo por motivos diversos: primeiro pela pandemia e, posteriormente, pela lenta reaproximação diplomática. Em 2023, quando a China reabriu suas fronteiras pós-Covid, esperava-se uma retomada vigorosa dos voos internacionais; contudo, incidentes geopolíticos (como o caso do balão espião e sanções tecnológicas mútuas) azedaram o clima, retardando a normalização dos fluxos aéreos entre os dois países. Para as empresas aéreas globais, a incerteza causada pela guerra tarifária significa planejamento mais cauteloso. Por exemplo, companhias da Ásia e Europa monitoram atentamente se as tensões vão afetar acordos de tráfego aéreo – e algumas já ajustam rotas focando em mercados considerados mais estáveis politicamente.

As grandes empresas chinesas, como Air China, China Eastern e China Southern, têm redirecionado parte de sua expansão para rotas Europa-Ásia e voos regionais asiáticos, onde as perspectivas de cooperação são melhores no momento​. Já empresas de carga aérea americanas (FedEx, UPS) e internacionais sentem os efeitos do menor comércio entre EUA e China: com tarifas tão altas desestimulando transações, o volume de mercadorias transportadas por via aérea nessa rota tende a cair, ou no mínimo crescer menos do que poderia. Algumas cargas urgentes chegaram a ser realocadas para evitar tarifas – houve casos de empresas americanas acelerando importações de eletrônicos chineses de alto valor por avião para driblar os prazos do tarifação​ –, mas essas são soluções paliativas.

No longo prazo, se a disputa prosseguir, é possível que as cadeias logísticas se reconfigurem: fabricantes podem optar por produzir componentes em outros países para fugir das tarifas, o que alteraria os fluxos tradicionais de transporte aéreo de peças entre China e América do Norte. Em resumo, para as linhas aéreas e viajantes, a guerra comercial traduz-se em menos voos, passagens mais caras e cooperação limitada. Apesar de não ser o fator único (políticas sanitárias, questões de segurança nacional e outros disputas também influem), o atrito tarifário contribui para manter um “céu fechado” entre China e EUA, justamente quando a integração aérea global – impulsionada por acordos Open Skies em várias regiões – deveria estar avançando. A persistir esse contexto, passageiros e empresas de ambos os lados tendem a pagar o preço, literalmente, dessa falta de sintonia entre Washington e Pequim.

Na indústria aeronáutica: fabricação, manutenção e suprimentos

Se nas rotas aéreas os efeitos são indiretos, na indústria de aviação eles são bem tangíveis. A guerra tarifária abalou as dinâmicas entre os grandes fabricantes de aeronaves e pode redefinir a cadeia produtiva global do setor. Um dos casos mais emblemáticos é o da Boeing, gigante americana de aviação: a empresa se tornou um peão importante no xadrez comercial sino-americano. A China há anos é um dos maiores mercados para aviões comerciais – respondendo por cerca de 20% das entregas globais da Boeing em 2017, por exemplo. Contudo, desde o agravamento das tensões (somado à crise do 737 MAX em 2019), as vendas da Boeing para companhias chinesas despencaram.

Durante a primeira guerra tarifária, curiosamente, a China evitou taxar diretamente os aviões da Boeing (para não prejudicar suas linhas aéreas), mas isso não evitou um congelamento nas entregas após 2019. Somente em meados de 2024 a Boeing conseguiu retomar entregas significativas para a China, após um longo intervalo sem novos pedidos. Mais recentemente, com a retaliação de 34% de tarifas chinesas sobre todos os produtos dos EUA, os jatos da Boeing ficaram subitamente muito mais caros em relação aos da rival europeia Airbus e aos jatos da emergente fabricante chinesa COMAC. Para se ter ideia, as três maiores companhias aéreas chinesas planejavam receber cerca de 180 Boeings novos entre 2025 e 2027 – encomendas já alinhadas para renovação de frota – e todas essas entregas estão em risco de atraso ou cancelamento, pois os aviões importados encareceriam enormemente com as novas tarifas​.

As empresas poderiam ter subsídios internos ou buscar isenções, mas dado o ambiente político, é mais provável que a China simplesmente opte por outras alternativas. De fato, essa tendência já vinha se desenhando: em julho de 2022, num dos maiores negócios pós-pandemia, as estatais chinesas encomendaram quase 300 jatos da Airbus (A320neo) num acordo coordenado – um “divisor de águas” visto como vitória europeia enquanto a Boeing permanecia praticamente congelada fora do mercado chinês​. Na ocasião, a Boeing chegou a lamentar publicamente que divergências geopolíticas entre Washington e Pequim estivessem atrapalhando seus negócios​.

Outro efeito direto da guerra tarifária foi acelerar a ambição chinesa de autossuficiência aeronáutica. A COMAC, fabricante estatal chinesa, lançou em 2017 seu primeiro jato de médio porte, o C919, buscando quebrar o duopólio Boeing-Airbus no segmento de aviões comerciais de corredor único. Ainda que o C919 dependa de diversos componentes ocidentais (como motores CFM LEAP franceses-americanos), o projeto é de enorme importância estratégica para a China. Analistas avaliam que as disputas prolongadas com os EUA estão servindo de catalisador para o avanço da COMAC​. Com o apoio explícito de Beijing, a COMAC tende a consolidar sua posição no mercado doméstico – as grandes companhias chinesas já operam o C919 em rotas locais – e planeja expansão para o sudeste asiático nos próximos anos​.

Se antes muitos duvidavam da capacidade chinesa em competir com Airbus e Boeing, agora o investimento e a urgência imprimidos ao programa aeronáutico chinês tornam essa perspectiva mais real. Especialistas projetam que, embora o duopólio ocidental permaneça firme no curto prazo, o atrito comercial pode ser o empurrão que faltava para a COMAC ganhar terreno, possivelmente remodelando o mercado ao longo do tempo​. Em outras palavras, as tarifas e sanções estão incentivando a China a dobrar a aposta na sua indústria aeronáutica – algo que, no longo prazo, criará uma concorrência adicional para as empresas tradicionais.

No tocante à cadeia de suprimentos e manutenção, a guerra tarifária expõe vulnerabilidades e força realinhamentos. A fabricação de aviões é uma operação globalizada: um jato comercial típico inclui peças e sistemas de dezenas de países. Por exemplo, um Boeing pode usar titânio russo, eletrônicos japoneses, borracha da Malásia e assim por diante. A China, em particular, é fornecedora de materiais essenciais – incluindo elementos metálicos de alta tecnologia.

Nos últimos meses, a China restringiu exportações de certos metais raros e terras-raras indispensáveis na indústria aeroespacial (usados em super-ímãs para motores, atuadores, sistemas eletrônicos de precisão, etc.). O Ministério do Comércio chinês colocou sob controle rígido elementos como disprósio, térbio e samário, cruciais para ímãs de alto desempenho utilizados em turbinas de jatos e em aviônicos militares. Isso funciona como um poderoso trunfo estratégico de Pequim: o mundo depende enormemente da China nesses insumos, já que o país detém aproximadamente 90% da capacidade de refino de terras-raras mundial. Caso essas restrições virem um bloqueio total, fabricantes ocidentais de aeronaves e motores poderiam enfrentar sérias dificuldades para obter componentes-chave.

Países ocidentais vêm correndo para diversificar fornecedores e investir em mineração e reciclagem de terras-raras, mas poucos projetos fora da China estão próximos de entrar em operação comercial – o que significa que o Ocidente permanece altamente vulnerável à pressão chinesa nesse campo. Em suma, a disputa tarifária ampliou o alerta sobre dependência externa: tanto EUA quanto Europa agora falam em “soberania industrial”, buscando políticas para produzir internamente (ou via aliados) aquilo que hoje compram da China, seja um chip eletrônico ou um metal especial para aviões.

Essa mudança de mentalidade – claramente uma visão mais conservadora em termos econômicos – é uma consequência indireta da guerra comercial. Além dos materiais, há os custos manufatureiros gerais. Tarifas sobre aço e alumínio (introduzidas pelos EUA já em 2018) encareceram a matéria-prima para produção de aeronaves nos Estados Unidos e elevaram custos para empresas como Boeing. Componentes simples importados da China – de telas e circuitos até acabamentos de cabine – ficaram mais caros com as sobretaxas, afetando também fornecedores europeus que montavam produtos na China para vender globalmente. Empresas de manutenção (MRO) que importavam peças chinesas ou enviavam aviões para revisão em centros técnicos na China agora reavaliam essas práticas devido às barreiras. Por exemplo, a General Electric Aviation e a Pratt & Whitney, que vendem motores a jato e serviços, precisam considerar um possível cenário de restrições mútuas: a China poderia dificultar a exportação de peças, enquanto os EUA poderiam limitar o envio de tecnologia de manutenção avançada.

Em paralelo, vale lembrar que segurança nacional entra na equação – autoridades americanas já manifestaram preocupação com peças falsificadas ou de procedência duvidosa na cadeia global (e a China, sendo grande fornecedor, é parte dessa equação). Assim, a tendência é de maior escrutínio e, possivelmente, do encarecimento dos processos de manutenção e operação das aeronaves. Por fim, a própria geopolítica da indústria aeronáutica está mudando. Em 2021, EUA e União Europeia resolveram uma disputa de 17 anos sobre subsídios à Boeing e Airbus, suspendendo mutuamente tarifas que haviam imposto um ao outro, e declararam que agora iriam “unir forças contra um novo rival – a China”​. Esse raro acordo transatlântico indica que ocidentais reconhecem a ascensão da aviação chinesa como um desafio comum. Ou seja, Boeing e Airbus, tradicionalmente concorrentes ferrenhos, passam a compartilhar um interesse: não perder terreno para a COMAC e outras iniciativas da China.

Essa cooperação ocidental pode levar, por exemplo, a embargos conjuntos contra produtos aeronáuticos chineses caso as tensões piorem, ou a esforços coordenados para dificultar a certificação internacional de aviões da COMAC fora da Ásia. Por enquanto, nada tão drástico ocorreu – afinal, o C919 ainda está longe de voar para a América ou Europa –, mas o alinhamento político sugere que o setor aéreo está, sim, em vias de se bipartir em esferas de influência: de um lado, um bloco EUA-UE e parceiros; de outro, a China e países mais próximos a sua órbita. Isso pode afetar acordos de homologação de segurança, padrão técnicos e até alianças de companhias aéreas no longo prazo. O mundo da aviação, que sempre foi símbolo de globalização (com aviões da Boeing voando em todos os continentes, assim como os Airbus), talvez precise se adaptar a uma era em que considerações geoestratégicas pesam quase tanto quanto considerações comerciais.

Considerações

A guerra tarifária entre China e Estados Unidos, longe de ser uma questão meramente alfandegária, tornou-se um fenômeno transformador com impactos palpáveis na aviação global. Historicamente, a aviação prosperou com a redução de barreiras – acordos de “céus abertos”, colaboração internacional em segurança e manufatura distribuída possibilitaram um crescimento incrível do tráfego aéreo nas últimas décadas. Porém, o atual embate comercial aponta na direção oposta: barreiras erguidas, desconfiança mútua e busca de autossuficiência. No curto prazo, as consequências podem ser vistas em preços mais altos (seja de passagens ou de aeronaves), em oportunidades perdidas de negócios e na necessidade de remanejamento de rotas e fornecedores. No longo prazo, há riscos e oportunidades. Entre os riscos, destaca-se a fragmentação do setor aéreo em blocos, com menos intercâmbio tecnológico entre Oriente e Ocidente e possíveis duplicações de esforço (por exemplo, duas cadeias separadas de produção de aviões comerciais, uma atendendo a China e outra o restante do mundo). Isso poderia significar ineficiências e perda dos benefícios da escala global.

Além disso, companhias aéreas podem enfrentar margens mais apertadas se os custos operacionais continuarem subindo devido a tarifas ou à necessidade de fontes alternativas mais caras de peças e insumos. Consumidores, por sua vez, podem ver menos opções de voos diretos e preços mais elevados em rotas internacionais cruciais. Tudo isso configura um cenário de “céu turbulento” para a aviação. Por outro lado, há quem veja nas dificuldades uma chance de renovação. A busca por soberania industrial tanto nos EUA quanto na China pode incentivar inovações e novos players no mercado de aviação. A Boeing e a Airbus, pressionadas, talvez acelerem o desenvolvimento de tecnologias para se manterem à frente. A COMAC, por sua vez, motivada pelo respaldo interno, pode finalmente emergir como uma concorrente séria, oferecendo ao mercado global uma terceira opção de fabricante de aviões comerciais. Países de porte médio (como Brasil, Canadá e Japão), que possuem indústrias aeroespaciais, poderão encontrar nichos a explorar se a grande disputa dividir o mercado – quem conseguir se manter neutro e eficiente pode fornecer componentes ou serviços para ambos os lados. E eventualmente, a própria lógica impiedosa da economia pode levar a um recuo nas hostilidades: se as perdas forem grandes demais para todos, EUA e China poderão reconsiderar algumas posições e negociar acordos mais equilibrados no futuro.

Esta análise buscou contextualizar historicamente a guerra tarifária e conectar seus desdobramentos às consequências práticas na aviação. Vimos como uma disputa iniciada por motivos comerciais e tecnológicos evoluiu para tarifas exorbitantes de 145%​, e entendemos suas implicações para companhias aéreas, fabricantes de aviões e acordos internacionais. Sem pender para ideologia, mas com uma preocupação realista quanto à soberania industrial e à segurança econômica, fica claro que a dependência excessiva de um rival estratégico traz riscos que muitos países agora tentam mitigar. O setor aéreo global, que sempre foi tanto um beneficiário, quanto um facilitador da integração mundial, está no centro desse redemoinho geopolítico. Resta torcer para que, passado o vendaval tarifário, as nações encontrem um novo equilíbrio – e que, em vez de um céu de tempestade comercial permanente, prevaleça eventualmente um céu de brigadeiro no qual a concorrência seja saudável e a cooperação, possível.


Referências Bibliográficas

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THE GUARDIAN. US-EU Cooperation in Aviation Industry Targets Chinese Competition. Disponível em: https://www.theguardian.com/business/us-eu-aviation-china-competition. Acesso em: abr. 2025.

Sobre o autor: 
Antônio Lourenço Guimarães de Jesus Paiva 
Pai da Helena
Diretor da Flylines 
Graduado em Aviação Civil pela Universidade Anhembi Morumbi
Especialista em Planejamento e Gestão Aeroportuária pela Universidade Anhembi Morumbi
Especialista em Gestão de Marketing pela Universidade de São Paulo
Especialista em Data Science e Analytics pela Universidade de São Paulo
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