O que falta para o Brasil ter uma low cost de verdade?
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A aviação de baixo custo revolucionou o transporte aéreo em várias partes do mundo, mas no Brasil essa revolução ainda não decolou por completo. Na Europa, por exemplo, a liberalização do mercado na década de 1990 permitiu o surgimento de empresas low cost pioneiras, como a irlandesa Ryanair, seguidas por EasyJet, Wizz Air e outras. Essas companhias adotaram modelos de operação enxutos e tarifas muito baixas, ampliando enormemente o acesso às viagens aéreas. Hoje, a Europa, os Estados Unidos e a Ásia abrigam as maiores empresas de baixo custo do mundo, tendo Ryanair, EasyJet, Southwest, Frontier, Spirit e AirAsia entre as principais expoentes. Em países onde esse modelo prosperou, voar se tornou algo corriqueiro e acessível para milhões de pessoas que antes raramente pisavam em um avião.
No Brasil, entretanto, o panorama é bem diferente. Desde a falência da antiga Varig e a liberalização parcial no início dos anos 2000, o mercado doméstico acabou se concentrando em três grandes empresas – Gol, TAM (depois LATAM Brasil) e Azul – que juntas respondem por 99,5% do tráfego de passageiros domésticos. A Gol Linhas Aéreas nasceu em 2001 já inspirada no conceito “low cost, low fare”, pioneira ao cortar serviços de bordo e vender passagens baratas pela internet. Contudo, com o tempo ela se aproximou de um perfil mais tradicional e hoje nenhuma companhia aérea nacional opera no estilo ultra low cost como a Ryanair. Os preços médios das passagens continuam altos e subindo – entre 2019 e 2023, o bilhete aéreo médio no Brasil encareceu 32% –, e voar ainda é um privilégio para poucos. Enquanto no Chile a população realiza 1,2 viagem de avião por ano em média, no Brasil esse número é de apenas 0,5, indicando um enorme potencial de demanda reprimida. Por que, então, nenhuma empresa de baixo custo “raiz” vingou em território brasileiro? Os motivos são múltiplos e passam por fatores econômicos, regulatórios, operacionais e mesmo culturais. Fique conosco até o final para descobrir.
Desafios do modelo low cost no mercado brasileiro
Um dos principais entraves para uma companhia aérea, verdadeiramente, low cost no Brasil é o custo operacional elevado, o famoso “custo Brasil”. Diversos itens essenciais para a aviação são significativamente mais caros aqui. O combustível de aviação (QAV), por exemplo, representa cerca de 36% dos custos das companhias brasileiras, acima da média global de 31%. Isso se deve a uma combinação de fatores: impostos elevados (historicamente o ICMS estadual sobre o querosene chegava a 25%, embora alguns estados tenham reduzido essa alíquota nos últimos anos), infraestrutura logística precária para distribuição de combustível e dependência de importações em parte do suprimento.
Além disso, a mão de obra no setor aéreo brasileiro tem custos altos e regras trabalhistas rígidas. Leis laborais específicas impõem limites de jornada e exigências de remuneração que, embora importantes para segurança e direitos fundamentais, aumentam as despesas fixas. Segundo especialistas, o gargalo atual é exatamente esse: “o custo de operar no Brasil”. Fica difícil oferecer tarifas muito baixas e ainda ter lucro diante dos custos trabalhistas e judiciais elevados do país. Ou seja, mesmo que uma nova empresa quisesse replicar a receita de sucesso da Ryanair, teria de encarar uma estrutura de custos local bem menos favorável.
A questão regulatória e jurídica também pesa. As empresas de baixo custo florescem em ambientes de mercado mais abertos e previsíveis. No Brasil, apesar de avanços como a permissão para até 100% de capital estrangeiro nas companhias aéreas e a agilização da certificação pela ANAC, ainda há muita insegurança jurídica. Um exemplo claro é a novela sobre a cobrança de bagagem despachada. Esse tipo de tarifa acessória – cobrar à parte por malas, marcação de assento, lanche a bordo etc. – é parte fundamental do modelo low cost, chegando a representar cerca de 20% do faturamento dessas empresas em outros mercados.
No Brasil, a cobrança por bagagem foi autorizada em 2017, com a expectativa de baratear as passagens, mas poucos anos depois o Congresso tentou reverter a medida e retomar a franquia gratuita de malas. Em 2022, o então presidente vetou essa reversão, porém o tema se arrasta sem definição clara e fica dependendo de disputas político-legislativas. Essa instabilidade assusta possíveis investidores: um dia pode-se cobrar pela mala, no outro não, o que dificulta planejar um negócio sustentado em receitas auxiliares. Representantes do setor alertam que essa indefinição “coloca o país como um pária internacional no mercado” e viola acordos de céus abertos. Em suma, falta um ambiente regulatório estável e alinhado às práticas internacionais de aviação comercial.
Outro ponto crítico reside na chamada “judicialização” das relações de consumo aéreas. O Brasil tem um histórico de demandas judiciais altíssimo contra companhias aéreas por problemas como atrasos, cancelamentos e extravios. Para se ter ideia, um estudo da IATA apontou que a chance de uma empresa aérea ser processada no Brasil é 5.836 vezes maior do que nos Estados Unidos. Nosso Judiciário aplica com rigor o Código de Defesa do Consumidor, inclusive concedendo indenizações por danos morais em situações em que lá fora se limitariam a compensações materiais padrão. Isso gera um custo adicional significativo – as indenizações e acordos judiciais já respondem por cerca de 1,94% do preço final das passagens no país.
Para uma companhia low cost, que opera com margens apertadíssimas, esse ambiente litigioso é um verdadeiro pesadelo. O CEO da argentina Flybondi, Mauricio Sana, declarou que vê o mercado doméstico brasileiro como atrativo, porém com “fortes barreiras de entrada”, citando exatamente a necessidade de “flexibilização e melhora no entendimento jurídico” como condição para planejar operar voos internos no Brasil. Ou seja, sem mudanças que reduzam o número de processos e tornem as regras de indenização mais claras e equilibradas, as low cost estrangeiras pensarão duas vezes antes de encarar o mercado brasileiro. Esse tema, já foi abordado, com mais profundidade, em outro artigo aqui do Blog da Flylines, confira neste link: https://www.flylines.com.br/blog/judicializacao-do-setor-aereo-no-brasil
Cultura dos passageiros e infraestrutura aeroportuária: um longo caminho a percorrer
Além dos fatores econômicos e legais, há aspectos operacionais e culturais que explicam a ausência de uma low cost genuína no país. Operacionalmente, a malha aérea brasileira ainda carece de alternativas de infraestrutura de baixo custo. Enquanto na Europa é comum as low costs utilizarem aeroportos secundários mais afastados – onde taxas são menores e há ampla disponibilidade de slots –, no Brasil as principais rotas concentram-se em poucos aeroportos grandes e saturados. Aeroportos como Congonhas (SP) ou Santos Dumont (RJ) têm limitações de espaço e distribuição de horários já tomada pelas companhias estabelecidas. Existem alguns terminais alternativos (como Campinas-SP, que a Azul transformou em hub, ou Pampulha-BH), mas nenhum sistema amplo de aeroportos “low fare” em torno dos grandes centros.
Operar nos aeroportos principais implica pagar tarifas altas de balcão, pátio e navegação aérea, reduzindo a vantagem de custo. Some-se a isso as grandes distâncias do território brasileiro – voos de três a quatro horas entre regiões são comuns – que exigem mais combustível e diminuem a rotatividade das aeronaves em um dia. As low cost vivem de alta utilização dos aviões em múltiplos trechos curtos, algo mais fácil em países europeus pequenos do que nos trechos extensos do Brasil. Em resumo, a geografia e a infraestrutura nacional não são as mais propícias para replicar ipsis litteris o modelo de baixo custo europeu ou norte-americano.
Há também a dimensão cultural e de hábitos de consumo. O viajante brasileiro passou décadas acostumado a voar em companhias tradicionais que, mesmo cobrando mais caro, incluíam certos confortos: despachar bagagem sem pagar extra, marcar assento, receber um lanche ou ao menos água a bordo. A chegada das primeiras experiências de voo realmente “no-frills” causou estranheza e resistência em muita gente. Relatos de passageiros na extinta low cost colombiana Viva Air – que chegou a operar no Brasil em 2022 – ilustram bem isso: as principais queixas envolviam falta de conforto, assentos apertados não reclináveis, cobrança para despachar malas ou escolher lugar e sem água gratuita. Mais de 2.500 avaliações online classificaram o serviço da Viva Air como “horrível”, indicando o choque que muitos tiveram ao se deparar com o verdadeiro modelo low cost.
Essas restrições fazem parte do conceito (você paga barato, mas recebe apenas o básico do básico), porém desagradaram uma parcela dos consumidores que “esperou pagar mais barato e receber o serviço de costume”. Ou seja, há um processo de educação do consumidor em curso: compreender que voos baratos implicam trade-offs e que serviços extras só estarão disponíveis mediante pagamento. Aos poucos, isso vem mudando – hoje até as grandes companhias nacionais cobram por mala despachada e pela comida, aproximando o público dessa nova realidade.
Ainda assim, conquistar de vez o coração do viajante brasileiro exige alinhar expectativas: a low cost não é um “downgrade” da classe econômica tradicional, mas sim um novo tipo de produto, diferente em proposta e experiência. Para muitos, trocar um ônibus de 30 horas por um avião de 3 horas sem serviço de bordo pode parecer vantajoso; para outros, enfrentar desconforto e pagar por cada item acaba não compensando a economia. É um equilíbrio delicado entre preço e conveniência que as empresas terão que calibrar ao nosso contexto.
Considerações
Diante de tantos obstáculos, o que falta para, enfim, o Brasil ter sua própria Ryanair ou EasyJet? Em primeiro lugar, reduzir o peso do Estado nos custos: avanços na redução de impostos sobre combustível (vários estados já baixaram o ICMS para 12%) e investimentos para baratear taxas aeroportuárias podem tornar a operação mais viável. Em segundo, segurança regulatória: consolidar de vez regras pró-competição, garantindo que cobranças de serviços opcionais sejam permitidas e respeitadas. Autoridades e empresas vêm dialogando para diminuir a judicialização – por exemplo, firmando convênios para resolver mais queixas em plataformas de mediação, evitando o uso indiscriminado dos tribunais. Também se discute ajustar normas de indenizações para alinhá-las aos padrões internacionais, sem prejuízo aos direitos do passageiro. Na questão trabalhista, reformas setoriais que permitam maior flexibilidade operacional (como contratos de trabalho e escalas mais adaptadas à realidade das low cost) seriam bem-vindas – sempre mantendo os padrões de segurança, é claro.
Do lado do mercado, alguns movimentos trazem otimismo. A chilena JetSMART, pertencente ao fundo americano Indigo Partners (experiente em low costs pelo mundo), já opera diversas rotas internacionais ligando o Brasil a países vizinhos e planeja iniciar voos domésticos brasileiros até 2028. A empresa inclusive encomendou dezenas de novos jatos Airbus, de olho na expansão sul-americana, e deixou claro que “o Brasil faz parte da estratégia de futuro”. Executivos da JetSMART e de outras low costs regionais, como Flybondi e SKY, veem enorme potencial aqui – afinal, milhões de brasileiros ainda não viajam de avião – mas reforçam que precisam de um ambiente mais favorável para conseguirem entrar com tudo. Eles esperam do governo sinais de concorrência saudável e estabilidade econômica para garantir os investimentos necessários. E não é pouca coisa: para competir num país continental, uma nova companhia teria que começar robusta – “não dá para operar um mercado tão grande com apenas três ou cinco aviões”, disse uma representante da JetSMART. Ou seja, é preciso capital, fôlego e confiança de que as regras do jogo não vão mudar no meio do campeonato.
Por fim, há o fator tempo. As mudanças culturais estão em curso e a curiosidade do consumidor pelo baixo custo tende a aumentar conforme surgem mais exemplos práticos. Iniciativas governamentais também buscam incentivar o acesso: recentemente discutiu-se o programa “Voa Brasil”, que planeja ofertar assentos ociosos a preços populares para determinados públicos. Embora não seja exatamente uma política para criar low costs, mostra a preocupação em popularizar a aviação. O próprio governo federal tem afirmado querer atrair mais empresas estrangeiras de baixo custo para operar por aqui. Com ajustes na legislação, o cenário pode se tornar mais atraente.
Em síntese, a decolagem de uma companhia realmente low cost no Brasil depende de um conjunto de fatores caminhando juntos. Implica aliviar o peso dos custos estruturais, garantir estabilidade nas regras, aprimorar a infraestrutura e, não menos importante, adaptar a mentalidade de mercado – tanto de consumidores quanto de investidores. Não é um caminho simples nem curto, mas exemplos internacionais mostram que os ganhos podem ser grandes: mais concorrência, passagens mais baratas e inclusão de uma nova fatia da população no transporte aéreo. O Brasil tem tamanho e demanda latente para sustentar uma low cost de verdade; falta criar solo fértil para que essa ideia, enfim, saia do papel e ganhe os céus brasileiros. Quando isso acontecer – e muitos acreditam que é questão de tempo – voar por aqui poderá se tornar tão comum e acessível quanto pegar um ônibus, realizando o sonho de uma aviação verdadeiramente acessível no país.
Referências bibliográficas
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Sobre o autor:
Antônio Lourenço Guimarães de Jesus Paiva
Pai da Helena
Diretor da Flylines
Graduado em Aviação Civil pela Universidade Anhembi Morumbi
Especialista em Planejamento e Gestão Aeroportuária pela Universidade Anhembi Morumbi
Especialista em Gestão de Marketing pela Universidade de São Paulo
Especialista em Data Science e Analytics pela Universidade de São Paulo